Sal embaixo da língua, limão na boca e gelo no saco.

💡 Mais Leve Do Que Nunca - Edição #028

 Super dica: Enquanto você lê esta edição, que tal ouvir "Obrigado Não”, canção de Rita Lee (1997), na playlist do Mais Leve Do Que Nunca no Spotify?

(🔗Ouça agora no Spotify!)

Era uma noite qualquer, de quarta-feira, sem data comemorativa. Eu estava em uma balada — sim, numa quarta-feira comum — muito conhecida no Rio de Janeiro. Prefiro não dizer qual para deixar brechas para você construir a sua fantasia que melhor lhe convir.

E, se você está imaginando que foi na The Home, aquela famosa por reunir gente sem camisa e de óculos escuros dançando como se não houvesse amanhã… adianto, meu caro leitor: errou.

Na pista pequena, algo estava fora do lugar…

De repente, uma tensão estranha no ar. Os seguranças chegaram rápido e tudo ficou claro: um rapaz caído, semi-acordado, rosto pálido, pressão mais baixa que a moral da Jojo Todynho e, pior ainda, sentado no próprio vômito.

Cena impactante suficiente para reunir um grupo de curiosos em volta, incluindo eu.

Eu sou curioso? Sim.

Mas sou do tipo raro que não se contenta em olhar. Vou lá, meto a cara, com a intenção de ajudar como se tivesse diploma de primeiros socorros na parede.

Mas não tenho. O que eu tenho? Quarenta e cinco anos e muitas horas de pista no currículo somadas a algumas visitas infelizes nas enfermarias das baladas. 

O fato é que eu sei o que fazer quando alguém apaga na balada. Você sabe?

E, por que não revelar o nome da casa? Porque os seguranças não sabiam muito bem o que fazer para trazer o pobre rapaz de volta.

Não hesitei. Fui direto ao bar pegar meus “suprimentos de trabalho”: gelo no saco (sim, escrotal), sal embaixo da língua, limão na boca.

Dito e feito: o rapaz voltou.

A cena foi chocante, mas não inédita. Quem frequenta a pista sabe.

Diferente sorte teve o Yago que infelizmente não resistiu aos efeitos da “colocação” que usava no quarto de hotel supostamente antes de uma festa.

Quem não se impressionou, recentemente, com essa notícia trágica que tomou conta da internet?

Ryan Silveira, 23 anos, um famoso - e também polêmico - ator de filmes de amor intenso, e seu colega, o modelo Yago Campos, 25, foram encontrados desacordados na banheira do Hotel Mykonos. O desfecho, você sabe: foi cruel.

Se a cena do rapaz no vômito te incomodou, preciso dizer: já fui testemunha de situações bem piores.

Era mais uma daquelas festas grandes que acontecem aqui no Rio, dias antes da virada de ano novo.

Certa hora, já de manhã, os DJs desligaram o som e a festa acabou antes da hora prometida. O motivo? A enfermaria não conseguia mais atender a quantidade de pessoas que passavam mal pelo excesso de “colocação” e, ainda pior: havia ocorrido um óbito.

Sejamos honestos: as drogas ultrapassaram há muito tempo os limites da pista de dança e dos banheiros das baladas. Não é novidade que grupos — grandes ou pequenos — se reúnam para explorar ao máximo os limites do prazer, embalados por doses generosas das substâncias mais variadas que a imaginação pode alcançar.

Hoje, isso tem até nome: chemsex.

A comunidade LGBT está em ruínas? Como se não bastassem os ataques violentos e os crimes de homofobia que ainda nos atravessam, o uso abusivo de drogas chega como um furacão, determinado a devastar tudo o que encontra pela frente.

O meu propósito com este texto é trazer para o debate temas sensíveis: chemsex, redução de danos, uso recreativo e uso abusivo. E, claro, trazer o olhar que a psicanálise nos empresta — uma leitura menos moralista e mais acolhedora.

Porque a chance de você estar atravessando essa dificuldade não é pequena.

Drogas sem moralismo, sem hipocrisia, sem julgamentos.

É assim que precisamos falar sobre o assunto. Ele é urgente na nossa comunidade e é exatamente por isso que está nesta edição do Mais Leve do que Nunca.

Vamos juntos com coragem.

Não é sobre quanto, é sobre como.

Diga não às drogas
Mas seja educado, diga: não, obrigado!
Por que whisky sim? Por que cannabis não?
Cuidado com a polícia, cuidado com o ladrão
Não seja condenado a votar em canastrão

Rita Lee - Obrigado Não

Talvez a forma mais importante de começar essa edição seja lembrando de uma verdade antiga: desde que o mundo é mundo, o ser humano recorre a entorpecentes.
Nas civilizações originárias, o uso podia ser medicinal, ritualístico ou recreativo — sempre aliado na tentativa de lidar com a dor, com o prazer e até com o sagrado.

Hoje, nada mudou tanto assim. Todo mundo - sem exceções - continua usando, de forma lícita ou ilícita.

E aqui vale uma distinção fundamental, sem pânico e sem moralismo: existe o uso recreativo e existe o uso abusivo. Mas a linha que separa esses dois mundos é fina, quase imperceptível.

No recreativo, a substância não compromete outras dimensões da vida: relações familiares, trabalho, finanças, vínculos afetivos.

Já no abusivo, o sujeito começa a se isolar, a romper laços, a perder o fio que o conecta ao mundo.

E aqui, os prejuízos são incalculáveis.

Até pouco tempo atrás defendia-se a ideia que o vício tinha uma relação com a quantidade. hoje estudos mais recentes apontam que o que importa não é o “quanto”, mas como o sujeito se relaciona com a droga.

Para alguns, pode ser um adereço de socialização (uso recreativo). Para outros, um recurso central para lidar com a angústia (uso abusivo/toxicomania).

O discurso médico clássico tende a medir a gravidade pelo volume: mais uso = mais problema.

Já na psicanálise e em muitas abordagens clínicas atuais, entendemos que o vínculo do sujeito com a substância é o que define se o uso é patológico ou não.

Há pessoas que bebem todos os dias e seguem funcionando no trabalho, nas relações, sem colapso. E outras que, com doses esporádicas, já veem sua vida desmoronar.

Cada sujeito inventa um modo de se relacionar com a droga. Para uns, é pura recreação, parte da festa. Para outros, é anestesia contra a dor.

Resumindo: o vício não está na quantidade, mas na função subjetiva da droga na vida de cada um.

É por isso que hoje falamos de REDUÇÃO DE DANOS: porque o foco não é simplesmente “zerar o uso”, mas ajudar o sujeito a encontrar modos menos destrutivos de lidar com sua relação com a substância (seja ela qual for).

Vamos falar mais sobre isso…

A grande sacada freudiana sobre as drogas

“Narciso acha feio o que não é espelho”

Quanto mais proibido
Mais faz sentido a contravenção
Legalize o que não é crime
Recrimine a falta de educação

Rita Lee - Obrigado Não

Mas afinal, o que a psicanálise tem a nos ensinar sobre o uso de substâncias — seja recreativo ou abusivo?

Antes de qualquer coisa, é preciso reforçar um ponto que nunca é demais repetir: o lugar do analista não é o do juiz. Estamos ali para escutar, sustentar e oferecer suporte. Isso quer dizer que, se você percebe que sua relação com as substâncias está ficando complicada, não há motivo para vergonha em procurar ajuda.

Freud foi direto ao ponto: é quase impossível viver em sociedade, submetido às suas normas e exigências, sem recorrer a entorpecentes.

Vivemos sob o peso da civilização — que, como ele diz, nos impõe um mal-estar quase insuportável. E diante desse mal-estar, precisamos de paliativos. Freud aponta três:

  1. As artes, que consolam.

  2. As substituições simbólicas, que distraem.

  3. Os entorpecentes, que anestesiam.

E, sejamos francos: de todos, as substâncias ainda são as mais “eficazes”.

Mas que mal-estar é esse que torna nossa existência “de cara limpa” tão insuportável?

Segundo Freud, ele vem de três fontes inevitáveis:

  • O corpo, condenado à dor, ao envelhecimento e à morte.

  • A natureza, indomável em suas catástrofes, doenças e acasos.

  • A vida em sociedade, que exige limites, proibições e renúncias.

Freud já apontava que a vida em comum exige a renúncia dos gozos individuais e a tolerância ao estranho — algo que nem sempre estamos dispostos a fazer.

Em O mal-estar na civilização (1930), Freud discute como a convivência social depende de um preço alto que cada indivíduo deve pagar: a renúncia parcial dos seus gozos individuais. Ele escreve que:

“A civilização exige a renúncia de uma parte da satisfação pulsional individual, e é essa renúncia que gera o mal-estar e a insatisfação dos indivíduos.”

freud, 1930 - O mal-estar na civilização

Essa renúncia não é apenas uma troca, mas um conflito profundo entre o desejo do eu e as regras do convívio coletivo.

Para conviver, precisamos abrir mão de satisfações imediatas, dos impulsos sexuais e agressivos. Essa renúncia se transforma em frustração, e a frustração em mal-estar.

E “de cara limpa”, ou seja, sem nenhum recurso que alivie, a vida pode se tornar pesada demais. É aí que entram as válvulas de escape: religião, amor, arte… e, claro, as drogas.

Freud não romantiza: ele reconhece que as drogas são um dos caminhos mais eficazes para escapar do mal-estar — porque alteram a química da percepção de imediato, sem exigir a mediação simbólica que o amor ou a religião pedem.

Elas dão prazer rápido, sem negociação ou conexão com a realidade.

Esse é o ponto: o mal-estar freudiano é a mistura inevitável de dor, frustração e falta que acompanha a existência.

E a droga, nessa equação, aparece como um paliativo.

Aqui cabem algumas perguntas essenciais:

Se a substância cumpre a função de paliativo, qual é, afinal, o papel da droga na vida do sujeito? Em que momento o uso recreativo se converteu em uso abusivo? Qual a narrativa que sustenta essa passagem?

Qual a história que precisa ser contada e não simplesmente silenciada?

Meu caro leitor, esta edição inaugura uma sequência dedicada à toxicomania — um tema urgente na nossa comunidade.

Cada vez mais, diante do peso do sofrimento, muitos têm buscado nas substâncias — lícitas ou ilícitas — um alívio imediato, uma fuga, ou a tentativa de preencher uma falta fundamental impossível de satisfazer.

Mas sabemos: se não olharmos de frente para essa questão, o desfecho pode ser cruel. Como foi com Yago, Ryan e tantas outras pessoas que perderam o controle de suas vidas, sofrendo em silêncio e buscando nas substâncias um anestésico para a dor.

Convido você, que chegou até aqui, a fazer um exercício de atenção: observe sua própria relação com as substâncias e, se quiser, compartilhe comigo suas reflexões, dificuldades ou conquistas.

Por hoje, ficamos por aqui.
Na próxima semana, seguimos com a Parte II.

Um abraço,
Filipe Estevam
#PodeSerLeve #MaisLeveDoQueNunca

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Humanidade - Uma História Otimista do Homem
Qual é a história? A partir de inúmeras e importantes pesquisas, de uma argumentação revolucionária e convincente e exemplos reais, Bregman nos mostra que acreditar na humanidade, na generosidade e na colaboração entre as pessoas não é uma atitude otimista – é uma postura realista! E tal comportamento tem enormes implicações para a sociedade. Quando pensamos no pior das pessoas, isso traz à tona o que há de pior na política e na economia. Mas, se acreditarmos na bondade e no altruísmo da humanidade, isso formará a base para alcançarmos uma verdadeira mudança na sociedade.

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“Uma análise é árdua e faz sofrer. Mas, quando se está desmoronando sob o peso das palavras recalcadas, das condutas obrigatórias, das aparências a serem salvas, quando a imagem que se tem de si mesmo torna-se insuportável, o remédio é esse. Pelo menos, eu o experimentei e guardo por Jacques Lacan uma gratidão infinita (…). Não mais sentir vergonha de si mesmo é a realização da liberdade (…). Isso é o que uma psicanálise bem conduzida ensina aos que lhe pedem socorro.

GePerec, Penser/classer, Paris, Hachette, 1995. Françoise Giround, Le Nouvel Observateur, N° 1610, 14-20 de setembro de 1995.



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