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Intolerância, preconceito e a comunidade LGBT em crise. Por que é tão difícil amar as diferenças?
💡 Mais Leve Do Que Nunca - Edição #027

“Narciso acha feio o que não é espelho”
✨ Super dica: Enquanto você lê esta edição, que tal ouvir ""Why's It so Hard", canção de Madonna (1992), na playlist do Mais Leve Do Que Nunca no Spotify?
(🔗Ouça agora no Spotify!)
Em 1994, Madonna lança um dos álbuns mais polêmicos da sua carreira: Erótica. Na mesma época, inicia a turnê The Girlie Show — que, pela primeira vez, a traz ao Brasil.
Ela começa o show como quem cospe na cara da moral conservadora. A música que abre o espetáculo é justamente Erótica. Surge no palco vestida de couro preto, roupas coladas, máscara e chicote.
Um visual típico do universo BDSM.
Mas então, algo muda. Depois de meia hora de tensão e provocação, o clima se transforma. O palco ganha cor, e Madonna desce do alto em um globo espelhado — uma bola de discoteca gigante.
O cenário agora faz referência aos anos 60 e 70, ao clima libertário dos clubes disco.
Lá de cima, ela grita:
“Come on, girls! Do you believe in love? 'Cause I got something to say about it. And it goes something like this...”
Já sabíamos qual música vinha aí: Express Yourself. O clima estava lá no alto, vibrante. Na sequência, ela manda um Deeper and Deeper.
E então, como quem sabe que ninguém sobrevive de euforia o tempo todo, ela abaixa o tom. Algo menos explosivo, mas nunca menos impactante.
Neste momento, canta uma música que não foi um grande hit, mas carrega uma pergunta que ressoa até hoje: Why is it so hard?
(Tudo bem se você não conhece — não estourou nas paradas, mas a mensagem era clara.)
Na coreografia, bailarinos e bailarinas se beijam, se tocam, se pegam — uma verdadeira suruba no palco, pra todos verem e o mundo se chocar.

“Why's it so hard to love one another?”
Era ali, no excesso de liberdade e desejo, que Madonna fazia sua provocação:
“Why can't we learn to accept that we're different?”
(Por que não podemos aprender a aceitar que somos diferentes?)
A edição #27 da Mais Leve do Que Nunca nasce dessa provocação.
Nasce da dificuldade real que vivemos hoje e, a cada dia mais, de conviver com a diversidade.
“Em tempos de polarização extrema e discursos que se fecham em bolhas, o desafio de acolher o diferente nunca foi tão urgente.”
Esta edição é dedicada a responder por que, mesmo em tempos de discursos éticos, hashtags sobre empatia e paradas do orgulho com milhões nas ruas defendendo a bandeira da diversidade, lidar com o diferente ainda é algo que beira o insuportável?
Porque, apesar do desejo de tolerância que colocamos na fala, no dia a dia, nas ações, o que a gente quer mesmo… é não precisar viver os confrontos e desconfortos que vem com a diversidade.
No fundo, bem no fundo, o que secretamente desejamos é isso: que o outro deixe de ser outro — e vire um espelho.
Mas, é claro, para explorar esse assunto com a profundidade que ele merece, vamos apoiar esta conversa nos textos de Freud.
O que podemos aprender com a psicanálise sobre diversidade quando ela é, a todo momento, atravessada pelo domínio do narcisismo do eu diante do desafio de conviver — e suportar — a alteridade?
Descubra comigo até o final desta edição, à luz da psicanálise de Freud e do mito de Narciso, por que a intolerância e o preconceito ainda ameaçam a comunidade LGBT e como romper o ciclo para celebrar a diversidade.
Vamos juntos?
Quando amar a si mesmo vira uma sentença de morte.

Na mitologia grega a lenda de Narciso é o pano de fundo simbólico que Freud usa para nomear sua teoria sobre o narcisismo, mas o sentido que ele dá vai muito além do mito.
A história é contada de diferentes formas, mas a versão mais conhecida está nas Metamorfoses de Ovídio.
Narciso era um jovem de beleza extraordinária, tão encantador que despertava o amor de todos, mas permanecia indiferente a qualquer pessoa que tentasse se aproximar.
A ninfa Eco, por exemplo, se apaixona por ele, mas, rejeitada, definha até restar apenas sua voz.
Como punição pela sua arrogância e incapacidade de amar o outro, os deuses o condenam a se apaixonar pela própria imagem refletida na água.
Incapaz de se afastar do reflexo, Narciso fica ali contemplando-se até morrer.
Em algumas versões, ele se afoga; em outras, morre de fome e sede, consumido pela fixação em si mesmo.
Para Freud, essa narrativa oferece uma metáfora potente: no narcisismo (primário) toda a libido - energia psíquica ligada ao desejo - está voltada para o próprio eu. Algo que, no início da vida, é vital para a construção da identidade.
Ou seja, Freud usa emprestada a imagem de Narciso não para condenar o “amor a si mesmo” em si, mas para investigar os riscos e as funções psíquicas de quando o investimento no próprio eu impede ou dificulta a relação com o outro.
Vamos falar mais sobre isso…
O eu clama por visibilidade, mas não suporta a alteridade.

“Narciso acha feio o que não é espelho”
“Enquanto estivermos apaixonados pela nossa própria imagem, a diversidade será apenas um ruído na superfície da água.”
Antes de avançarmos… preciso esclarecer o que quero dizer quando falo do famoso — e muito mal compreendido — conceito de narcisismo.
Longe de ser um “vilão”, o narcisismo, para a psicanálise, é uma estrutura fundamental da vida psíquica.
Em Freud, no seu texto Introdução ao Narcisismo (1914), entendemos que o narcisismo não é só egoísmo ou ego inflado — e também não é o mesmo que o transtorno de personalidade narcisista da psiquiatria.
O narcisismo primário é o momento em que toda a nossa energia libidinal está voltada para o eu — é o investimento da libido em nós mesmos. Esse investimento não é só questão de “autopreservação biológica”, mas a base da constituição do nosso eu, do nosso sentido de existência.
Enquanto bebê, essa é a condição necessária para que a vida psíquica se organize: antes de conhecer o mundo ou o outro, a criança vive um estado onde toda a sua libido está focada nela mesma.
É um momento de “encapsulamento narcísico”, onde ainda não existe uma clara distinção entre eu e o mundo externo.
Mas essa condição não dura para sempre. Com o tempo, o bebê começa a investir sua libido em objetos externos — outras pessoas, o mundo, o diferente. É o que chamamos de narcisismo secundário, quando a energia que antes estava no eu se desloca para o outro.
O problema — e o desafio — acontece quando o narcisismo, que é fundamental para existir, se torna uma barreira rígida para reconhecer o outro como diferente.
Aqui, o que está em operação é o movimento de romper com o encapsulamento narcísico para, então, lidar com o mundo externo e tudo que ele traz consigo: as frustrações, as diferenças, a alteridade — a diversidade.
“Essa bolha narcísica que Freud descreve não é um erro, mas um mecanismo vital — e a travessia para fora dela é o que nos faz verdadeiramente humanos.”
É nesse ponto que a diversidade se torna insuportável: não porque o outro realmente nos ameace, mas porque ele nos lembra que não somos o centro absoluto do universo.
O eu clama por visibilidade, mas não suporta a alteridade.
O paradoxo oculto que está enfraquecendo a causa que você acredita defender

Tendo essa ideia de narcisismo pelo menos um pouco mais clara, agora podemos avançar nesse debate sobre intolerância e diversidade.
O paradoxo do discurso sobre diversidade é que, muitas vezes, ele opera sob o domínio do narcisismo. Em vez de abrir-se à alteridade, exige que o outro reconheça minha diferença sem que eu precise reconhecer a dele.
Freud já apontava que a vida em comum exige a renúncia dos gozos individuais e a tolerância ao estranho — algo que nem sempre estamos dispostos a fazer.
Em O mal-estar na civilização (1930), Freud discute como a convivência social depende de um preço alto que cada indivíduo deve pagar: a renúncia parcial dos seus gozos individuais. Ele escreve que:
“A civilização exige a renúncia de uma parte da satisfação pulsional individual, e é essa renúncia que gera o mal-estar e a insatisfação dos indivíduos.”
Essa renúncia não é apenas uma troca, mas um conflito profundo entre o desejo do eu e as regras do convívio coletivo.
Para Freud, a civilização só é possível porque cada um aceita — nem sempre de bom grado — limitar seus impulsos, abrir mão de certos prazeres imediatos em prol da segurança, da ordem e do bem-estar comum.
Mais do que isso, essa renúncia implica tolerar o estranho, o diferente, aquilo que foge da norma do eu, da minha bolha narcísica.
Freud aponta que a convivência social exige “a tolerância ao estranho”, um exercício árduo porque o estranho ameaça o equilíbrio narcísico do eu.
Assim, a intolerância e o preconceito podem ser vistos como expressões do mal-estar da civilização — o conflito entre o desejo narcísico de gozo individual e a exigência social de renúncia e aceitação do outro.
Essa renúncia é um desafio constante.
Freud ressalta que o convívio social exige a supressão de impulsos narcísicos, o que nem sempre estamos dispostos a fazer.
Por isso, a intolerância e o preconceito são manifestações de um narciso ferido que não aceita perder sua posição privilegiada.
Além disso, em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), Freud observa:
"Os indivíduos se ligam ao grupo através de uma ilusão narcísica de semelhança, e tudo o que ameaça essa ilusão é percebido como hostil."
Essa dinâmica explica por que o que deveria ser um convite ao encontro com o outro — a diversidade — muitas vezes se transforma em uma performance narcísica: queremos ser aceitos no grupo, mas recusamos aquilo que nos confronta ou que ameaça nossa identidade.
O discurso da diversidade, assim, corre o risco de se tornar apenas um espelho narcísico — onde buscamos apenas confirmação de nós mesmos — quando, na verdade, deveria ser uma travessia que implica em reconhecer, suportar e celebrar a alteridade.
Para além do reflexo: a difícil travessia que transforma a nossa relação com as diferenças.

Nosso maior desafio: rompermos as barreiras do nosso encapsulamento narcísico.
“Por que não podemos aprender a aceitar que somos diferentes?”
Essa pergunta de Madonna, feita com força e provocação em 1994, permanece mais atual e urgente do que nunca.
A psicanálise nos mostrou que o entrave está profundamente enraizado na estrutura do nosso eu: o narcisismo, que nos permite existir, também pode se tornar a prisão que nos impede de acolher o outro como ele é.
Freud já apontava que a vida em sociedade exige renúncia — renúncia do gozo individual, da fantasia de ser o centro absoluto. Essa renúncia não é só um custo; é a condição para que a diversidade exista e floresça.
“O narcisismo é como um espelho que nos fascina, mas que, quando não conseguimos sair do reflexo, nos aprisiona em uma bolha invisível.”
Mas, na prática, essa renúncia é o que mais nos desafia. Preferimos que o outro seja igual a nós, que não nos desconcerte, que não nos faça confrontar nossa própria finitude, nossa incompletude.
O narcisismo que nos funda pode também nos cegar para o outro, transformando o diferente em ameaça.
Essa cegueira é a raiz da intolerância, do preconceito, do medo que paralisa e destrói.
Mas essa não é a única via!
A psicanálise, ao revelar esse mecanismo, também nos oferece a possibilidade de romper com ele.
A travessia narcísica que Lacan propõe — o reconhecimento de que o outro não é um espelho, mas um sujeito com sua própria alteridade — é um convite à transformação.
Construir uma sociedade menos narcísica significa aceitar a vulnerabilidade do eu diante do outro. Significa abraçar a alteridade como potência, não como ruína.
É reconhecer que a força de uma comunidade está justamente nas diferenças que a compõem — não na uniformidade que a limita.
Mais do que aceitar a diversidade, é urgente que aprendamos a celebrar a diferença.
Que a convivência se transforme de um desafio insuportável em uma oportunidade de crescimento coletivo.
E isso só será possível se abandonarmos a ilusão de um eu autossuficiente e aceitarmos que ser humano é, antes de tudo, estar em relação — uma relação que exige risco, abertura, desconforto, mas também acolhimento e respeito.
Por isso, a pergunta que Madonna lançou não é apenas um questionamento artístico ou cultural. É um chamado para repensarmos nossa forma de estar no mundo.
Que possamos, juntos, construir uma sociedade onde a diversidade não seja um problema a ser tolerado, mas uma riqueza a ser vivida — onde as diferenças não nos separem, mas nos fortaleçam.
Que o “por que é tão difícil amar o outro” se transforme em “como podemos amar o outro na sua diferença, e assim nos amar melhor”.
Essa é a travessia que a Mais Leve do Que Nunca propõe nesta edição!
É um convite para todos nós, a partir do nosso próprio desejo, rompermos as barreiras do nosso encapsulamento narcísico para encontrar na diversidade a verdadeira força que se transformará em vida na nossa comunidade LGBT.
Por hoje ficamos aqui.
Até semana que vem.
Abraços,
Filipe
#PodeSerLeve #MaisLeveDoQueNunca

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(fonte: metropoles.com)
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“Uma análise é árdua e faz sofrer. Mas, quando se está desmoronando sob o peso das palavras recalcadas, das condutas obrigatórias, das aparências a serem salvas, quando a imagem que se tem de si mesmo torna-se insuportável, o remédio é esse. Pelo menos, eu o experimentei e guardo por Jacques Lacan uma gratidão infinita (…). Não mais sentir vergonha de si mesmo é a realização da liberdade (…). Isso é o que uma psicanálise bem conduzida ensina aos que lhe pedem socorro.
GePerec, Penser/classer, Paris, Hachette, 1995. Françoise Giround, Le Nouvel Observateur, N° 1610, 14-20 de setembro de 1995.
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