Quem nunca sofreu por um amor inventado?

💡 Mais Leve Do Que Nunca - Edição #005

“Adoro um amor inventado”

Amor da minha vida
Daqui até a eternidade
Nossos destinos
Foram traçados na maternidade

Exagerado
Jogado aos teus pés
Eu sou mesmo exagerado
Adoro um amor invetado

Exagerado - Cazuza, 1985

Levante a mão quem nunca sofreu por amor.

Cazuza sabia muito sobre o amor e sabia o que queria dizer com “adoro um amor invetado”. Eu fiquei muito na dúvida se não escolhia “Um amor inventado” como título para este texto, mas no final quem aqui nunca sofreu por um amor (inventado)?!

Relacionamentos amorosos são pautas recorrente nas sessões de terapia com meus pacientes. Surpreendentemente, o amor – ou, mais precisamente, a falta dele – ocupa o topo da lista das queixas, até mais do que o próprio diagnóstico de HIV.

Os contextos variam, mas o amor está sempre presente. Seja pela dor de uma separação, a dor da carência por sentir-se sozinho ou os desafios de casais que vivem suas relações conflituosas.

Nesta quinta edição do Mais Leve Do Que Nunca, me propus a escrever sobre o amor com um objetivo claro: trazer um pouco mais de clareza sobre o que é o amor, ajudando você, meu amado leitor e amada leitora, a construir relações amorosas mais saudáveis e verdadeiras – não apenas com os outros, mas, sobretudo, consigo mesmo.

Mas, para isso, é importante ler até o fim! E eu ficarei muito feliz em receber seu comentário sobre as reflexões provocadas aqui. Trocas são sempre bem-vindas.

Não é novidade que, desde que o mundo é mundo, as histórias de amor e desamor da vida real inspiram a arte – e vice-versa.

Minha geração (40+) cresceu ouvindo histórias protagonizadas por lindas princesas que sonhavam em encontrar seu príncipe encantado, este chegaria em um cavalo branco e as salvaria das mazelas de suas vidas.

Um beijo de amor verdadeiro selaria a união, e viveriam, então, a promessa de serem felizes para sempre.

Chegamos à vida adulta inspirados por contos de fadas, romances e filmes de Hollywood, nos lançamos na vida em busca destes amores épicos.

Depositamos no amor a expectativa de uma completude, a promessa de uma felicidade plena.

Desejamos que o outro traga um “algo a mais", que venha como “outra metade da laranja” capaz de preencher um vazio que acreditamos ser a barreira para alcançar essa felicidade total.

O Banquete.

“O Banquete (depois de Platão)” - Anselm Feuerback,1874

Há quem acredite nas “almas gêmeas”, o encontro de duas pessoas que quando juntas se completam perfeitamente, como se fossem duas metades de um mesmo ser, destinadas a se reencontrar em todas as suas vidas e viver juntas um ideal de amor.

"O Banquete" é uma obra escrita por Platão, por volta de 380 a.C. Basicamente, é uma obra que reúne uma série de discursos sobre a natureza do amor.

Diversos personagens, reunidos em volta de uma mesa, apresentam interpretações diferentes sobre o amor, enriquecendo a discussão com múltiplas perspectivas.

Aristófanes, um dos convidados do banquete, apresenta uma metáfora fascinante sobre a origem do amor e a busca pela nossa outra metade.

Ele conta uma história mitológica na qual os seres humanos eram originalmente esferas completas.

Esses seres, dizia ele, possuíam quatro braços, quatro pernas e uma cabeça com duas faces. Eram poderosos, mas, por sua arrogância, desafiaram os deuses.

Zeus, temendo sua força, decidiu castigá-los. Como punição, dividiu-os em duas partes com uma espada, criando assim os humanos como somos hoje.

De volta à Terra, mas agora separados, cada metade vaga pelo mundo procurando sua outra metade perdida, para finalmente se sentir completa novamente.

A saudade, segundo Aristófanes, nada mais é do que o sentimento de algo que nos falta.

Essa busca pela outra metade sugere um amor romântico baseado na monogamia, o que nos leva a reflexões importantes nesta minha proposta de escrever sobre o amor. 

  1. Será que é possível que exista alguém — uma metade — que seja capaz de satisfazer todas as minhas necessidades e eu as dela por completo?

  2. Será que só é possível sentir-se feliz e completo estando em uma relação com alguém?

  3. Será que não é possível ser feliz sozinho?

  4. O "amor-próprio" é ou não suficiente para que você se sinta completo e feliz sem depender do outro?

A falácia do Amor-próprio

“Amor-Próprio”

Contrariando aqueles que acreditam e sonham com o encontro de almas, há também um grupo de pessoas que defende a ideia de que só é possível sentir-se completo quando se nutre por si mesmo uma quantidade suficiente de amor, a ponto de não precisar do amor do outro.

É uma ideia que até parece convincente, mas que funciona apenas na teoria, como palavras ditas emergencialmente para consolar um coração partido. Na prática, a história é um pouco diferente.

O imperativo do amor-próprio, onde é preciso primeiro se amar para depois amar o outro, simplesmente não existe.

No meu texto “Aceita que dói menos” , explico melhor sobre a carência e nossa necessidade, como seres humanos, de troca e compartilhamento, já que somos por natureza seres em relação.

Sendo assim, só se aprende sobre o amor – e sobre o amor-próprio – em uma relação com o outro.

É também na relação com o outro que se aprende sobre autovalorização e autoestima.

O conceito de "amor-próprio" é frequentemente promovido como uma solução simplista para todas as questões emocionais, como se bastasse nos amarmos plenamente para nos sentirmos completos.

A realidade é que, por mais importante que o amor-próprio seja, ele não elimina o desejo e a busca pelo amor do outro, que estão sempre presentes.

Seja qual for a forma como você fantasia o amor – seja buscando, pelas estradas da vida, a sorte de reencontrar sua “alma gêmea” ou como um militante fervoroso da onda do “amor-próprio” –, todas essas formas de amar partem de uma mesma lógica: a ideia de um amor que é completo.

Estamos habituados a ter uma visão do amor que caminha para um todo e ignora – ou tenta esconder – uma de suas facetas: a falta.

Talvez aqui esteja a falha oculta que traz tantos desentendimentos, frustrações e sofrimento quando o assunto é amar. Não é possível falar de amor sem falar de desejo, e aqui está o pulo do gato: só existe desejo onde existe falta.

O amor, para além das histórias românticas, envolve a complexa dinâmica de desejos, faltas e a incompletude que caracteriza a condição humana.

"Amar é dar o que não se tem a quem não quer”

Como diz o dito popular, “agora a casa caiu”, porque falar sobre amor é muito mais complexo e menos romântico do que esperávamos ou gostaríamos que fosse.

Vivemos hoje a frustração da expectativa do amor hollywoodiano e, ao mesmo tempo, a frustração de um amor incompleto na vida real.

Porque nenhum amor real será completo ou bom o suficiente como o amor da sua fantasia.

Jacques Lacan

A frase "Amar é dar o que não se tem a alguém que não o quer" é de autoria de Jacques Lacan, um famoso psicanalista francês. Nesta afirmação, ele sintetiza a complexa relação que se estabelece entre o amor, o desejo e a falta.

Amor, falta e desejo

Lacan desenvolveu suas ideias a partir das teorias freudianas, enfatizando a centralidade da falta e do desejo no psiquismo humano.

Para Lacan, o desejo é sempre o desejo do “Outro”1, uma vez que seu desejo está sempre mediado pelo desejo do “Outro” e por essa incessante tentativa de preencher uma falta que nunca se preenche totalmente.

Segue o fio…

“Dar o que não se tem”

Este aspecto da frase se refere à noção lacaniana de que o desejo humano é marcado por uma falta. No contexto do amor, isso significa que o que se oferece ao outro é algo que, em última análise, é uma parte de si que falta, algo que está além da mera posse material ou concreta.

Em termos psicanalíticos, é um reconhecimento da ausência e da carência inerente à condição humana. O amor, então, envolve oferecer ao outro essa falta, esse desejo.

“Para alguém que não o quer”

Este trecho reflete a complexidade e a ambiguidade dos desejos e das relações humanas.

Muitas vezes, o objeto de nosso amor ou desejo não deseja aquilo que oferecemos ou, de uma forma mais profunda, não deseja ser o objeto desse desejo de maneira que corresponda perfeitamente ao nosso anseio.

Agora, olhe para sua vida, para suas relações, e me diga (nos comentários) se isso não é uma boa explicação para o amor que vivemos na nossa vida real?

Porque, no final das contas, você acaba sempre fazendo o mesmo: tratando o outro (dando para o outro) da forma como você gostaria de ser tratado (aquilo que você não tem).

Por fim, o que os amantes frustrados e infelizes fazem é ofertar seus vazios como oferendas para seus amores, empacotados em palavras bonitas como “você é tudo para minha vida” ou “tudo que eu preciso é você para ser feliz”, com a expectativa de que esses amores possam trazer alguma forma de alívio, preenchendo um abismo “cheio” de nada.

Amar e ser amado é muito mais sobre faltas e imperfeições do que sobre realização, harmonia e completude.

E não, não pense que meu coração psicanalítico está amargo ou que já nem acredito mais no amor, ou que, no lugar de um coração, existe uma pedra de gelo.

Entender o amor pelas suas faltas, sem as vestimentas românticas que foram tão bem construídas ao longo dos últimos séculos, é o que nos permite, ao contrário do que se espera, viver relacionamentos mais autênticos, honestos e saudáveis.

Viver a fantasia de encontrar alguém "perfeito", "alguém que venha para completar" ou "que sejam tudo uma para o outro" gera frustração justamente por não reconhecer a realidade da incompletude do desejo, do amor e da natureza humana.

Também nos ajuda a lembrar que um não está na relação para dar conta dos vazios e carências do outro, e que ambos irão falhar, porque todos somos imperfeitos.

Amar e ser amado significa lidar com a impossibilidade de total completude. Lidar com as faltas, as falhas e as imperfeições.

No fim das contas, o amor não é sobre encontrar a peça que falta, mas sobre aprender a lidar com o que sempre faltará.

Amar é aceitar a imperfeição, é reconhecer a incompletude e ainda assim estar disposto a caminhar junto, sabendo que nem sempre o outro terá o que você deseja ou precisa.

E agora, eu pergunto a você: como tem sido sua relação com o amor? Você consegue enxergar suas faltas e as do outro sem expectativas de completude? 

Se você gostou desta reflexão, não se esqueça de compartilhar este texto com alguém que pode se beneficiar desta leitura. Afinal, todos nós estamos navegando essas águas complexas do amor juntos.

Deixe seu comentário ou compartilhe suas experiências, porque, como eu disse antes, as trocas aqui são sempre bem-vindas.

Forte abraço e até mais.
Filipe Estevam
#PodeSerLeve

Atualizações da semana: o que rola nos bastidores

👉️ (1) O que estou assintindo:
- Monstros: A História de Lyle e erik Menendez (Netflix) 
- Coringa: Delírio a Dois

👉️ (2) Música da semana:
- Exagerado - Cazuza, 1985

👉️ (3) Agenda:
- A convite da ONG Projeto Criança AIDS, nesta quinta-feira, dia 24 de outubro, às 20h (horário de Brasília), participarei ao vivo de mais uma edição do Conta Pra Gente. Tiremos uma conversa leve e informativa sobre HIV/AIDS, com foco nos cuidados com a saúde mental. Acesse o Instagram do projeto para conferir: @pcaids."

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1  Grande Outro: Na teoria lacaniana, o Grande Outro (com maiúscula) é um conceito fundamental que se refere a uma dimensão simbólica que organiza a linguagem, a cultura e as normas sociais. O amor, neste sentido, é uma tentativa de se relacionar com essa alteridade radical. Ele é o lugar de onde o sujeito espera reconhecimento e orientação, representando uma espécie de "grande estrutura" da qual dependemos para encontrar nosso lugar no mundo e para atribuir significado às nossas experiências. O Grande Outro não é uma pessoa específica, mas sim uma instância que nos antecede, e à qual recorremos em busca de validação e sentido. Ele é o portador da linguagem e das leis, sendo o representante do conjunto de significados que regula as relações sociais e subjetivas.

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