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Aceita que dói menos(?)
💡 Mais Leve Do Que Nunca - Edição #004

Aceitação não é sobre "doer menos"
Imagine-se diante de uma enfermeira que tem nas mãos o resultado do seu teste de HIV.
Você está sozinho, aflito e angustiado, esperando pela resposta. Sente sua garganta seca. As mãos geladas e suadas. Suas pernas tremem.
Os segundos parecem se arrastar até que, lentamente, ela olha para o papel, dá uma última conferida no que está escrito e finalmente revela:
— Então, o seu teste deu positivo.
Nesse momento, você se sente perdido e desamparado. Como se um abismo se abrisse diante de você. O tempo para, e uma sensação de quase morte toma conta do seu corpo.
Um vazio invade sua alma e, por frações de segundos, você é consumido por medos, incertezas e inseguranças. Naquele momento, você não precisa de muita coisa, a não ser de palavras de acolhimento e as orientações que a enfermeira poderia te oferecer.
Agora, imagine que, em vez disso, você não recebe nenhuma palavra de conforto, nenhum gesto acolhedor e nenhuma informação que possa trazer alívio.
Tudo o que você ouve é um seco e direto:
— Deu positivo, aceita que dói menos.
De tudo o que poderia ser dito, essa expressão sem dúvida foi a pior escolha.
A expressão “aceita que dói menos” tem ganhado popularidade, muitas vezes usada em tom de imposição de um fato, deboche, provocação ou ironia.
Como tantas outras expressões populares, nem sempre se fala algo por entender o que realmente significa.
Aceitar, no sentido de reconhecer a realidade com todas as suas contradições e dificuldades, é o resultado de um processo profundo de elaboração emocional que envolve tempo e muito trabalho subjetivo.
A descoberta do diagnóstico é um bom exemplo de partida para avançarmos nossas reflexões sobre aceitação e autoaceitação, mas não o único.
Aceitar-se e reconhecer-se como uma pessoa LGBTQIAPN+ também é um processo que pede por um trabalho de elaboração subjetiva e alguns enfrentamentos.
Aceitar o término de uma relação e o falecimento de uma pessoa que amamos não é diferente. Todos esses processos, e tantos outros, exigem cuidado e tempo de elaboração.
A palavra "elaboração" vem do latim elaboro, que significa “obter ou realizar à custa de esforço ou trabalho".
👉️ É exatamente isso que a aceitação implica: esforço e muito trabalho interno, busca por compreensão, ressignificação e enfrentamento da dor.
O propósito deste texto é desmistificar a ideia de que aceitar é simplesmente "deixar pra lá". A aceitação verdadeira é um processo que exige reflexão, trabalho de elaboração emocional e jamais pode ser imposta de fora para dentro.
HIV: O Desafio de Ocupar Espaços Com Firmeza
O nosso maior desafio está em descobrir a medida certa de como devemos nos posicionar com firmeza, ocupar nossos espaços e, ao mesmo tempo, reconhecer a complexidade das reações dos outros. É um processo delicado.
Existe uma linha tênue entre nos autorizarmos a ser quem somos, sem nos envergonharmos ou nos silenciarmos, e respeitar o fato de que a aceitação – tanto nossa quanto de quem nos cerca – é um caminho que demanda tempo.
Ser fiel a quem somos exige coragem, especialmente em contextos onde nossa identidade ou nossa condição de saúde, como viver com HIV, pode ser alvo de preconceitos ou estigmas.
Para muitas pessoas, assumir essa identidade de forma plena pode parecer desafiador, pois envolve não apenas se ver de maneira positiva, mas também enfrentar os olhares e julgamentos alheios. No entanto, ocupar o nosso espaço, dizer "este sou eu", é um ato de resistência.
Uma resistência que não se trata de forçar aceitação, mas de afirmar que existimos e temos o direito de ser aceitos.
HIV e os Cinco Passos para a Aceitação
É impossível produzir qualquer texto que fale sobre HIV e a aceitação como resultado de um processo de elaboração, sem mencionar os estudos de Elisabeth Kübler-Ross.
Kübler-Ross foi uma renomada psiquiatra e escritora suíço-americana, conhecida por seu trabalho pioneiro no campo dos estudos sobre a morte, o morrer e o luto.
Ela ganhou fama mundial ao desenvolver o modelo das cinco fases do luto, descrito em seu livro "On Death and Dying" (1969), onde detalhou como as pessoas enfrentam a perspectiva da morte ou a perda de alguém querido.
As fases do luto são um exemplo clássico para entender como a aceitação é um processo gradual, nunca uma imposição, que passa por diferentes estágios emocionais.
A teoria das "Cinco Fases do Luto", de Elisabeth Kübler-Ross, descreve as etapas que as pessoas geralmente vivenciam ao lidar com uma perda: negação, raiva, negociação, depressão e, por fim, aceitação.
Elas podem ser usadas como um paralelo para explicar como uma pessoa reage ao receber um diagnóstico de HIV, ilustrando sua jornada até a aceitação e superação.
É um modelo que nos ajuda a entender as respostas emocionais diante de perdas ou situações traumáticas.
Essas fases não acontecem necessariamente obedecendo a uma ordem rígida, podendo inclusive acontecer uma se sobrepondo a outra, e também não há um tempo preciso determinado para cada uma delas. Mas o processo de transição entre elas é fundamental para alcançar a aceitação.
Primeira fase: A Negação
A pessoa tem dificuldade em acreditar que a perda ou o evento traumático realmente aconteceu. A negação é uma forma de proteção imediata, que permite à mente absorver o choque lentamente. Essa fase pode durar alguns minutos ou se estender por meses, ou até mesmo anos.
Diagnóstico de HIV: Após receber o diagnóstico, é comum que a pessoa inicialmente negue a realidade da situação. Pensamentos como "Isso não pode estar acontecendo comigo" ou "Esse resultado deve estar errado" são típicos.
A negação oferece uma forma de adiar o enfrentamento da verdade.
Segunda fase: A Raiva
À medida que a realidade começa a se impor, a raiva surge como uma forma de expressar frustração e impotência. A pessoa pode direcionar essa raiva a si mesma, a outras pessoas ou até mesmo ao falecido, no caso de um luto por morte.
👉️ Diagnóstico de HIV: No contexto do HIV, a raiva pode ser dirigida à pessoa que transmitiu o vírus, ao sistema de saúde ou, pior ainda, a si mesma.
Os perigos nesta fase são que, movida pela raiva e incompreensão, a pessoa pode atentar contra a vida de outras pessoas e também contra sua própria vida.
A pessoa pode se perguntar: "Por que isso aconteceu comigo?" ou "Quem é o culpado?". Esse sentimento reflete a dor interna e a dificuldade de lidar com a nova realidade.
Terceira fase: A Negociação
A pessoa tenta negociar uma maneira de reverter ou minimizar a perda. Esse estágio muitas vezes envolve pensamentos ou orações, como "Se eu fizer isso ou aquilo, talvez as coisas melhorem" ou "Se eu tivesse feito algo diferente, isso não teria acontecido".
👉️ Diagnóstico de HIV: No caso do HIV, a negociação pode aparecer como tentativas de encontrar uma "cura rápida" ou solução milagrosa, ou de fazer promessas de mudança de estilo de vida. "Prometo nunca mais fazer isso ou aquilo."
Pode haver um desejo de voltar no tempo ou evitar comportamentos passados que possam ter levado à infecção.
Quarta fase: A Depressão
Quando a pessoa começa a compreender plenamente a realidade da perda, surgem a tristeza profunda e o vazio. Essa fase reflete a sensação de que não há mais como reverter a situação.
👉️ Diagnóstico de HIV: Com o HIV, a depressão pode se manifestar como sentimentos de desesperança, medo do futuro e da própria mortalidade. A pessoa pode se sentir paralisada pelo estigma, pela falta de perspectiva e pelo medo das consequências de viver com o vírus.
Quinta e última fase: A Aceitação
Nesta fase, a pessoa finalmente aceita a realidade da perda. Embora ainda possa haver tristeza, diferente de todas as outras fases, agora o indivíduo começa a encontrar formas de seguir em frente e reestruturar sua vida.
👉️ Diagnóstico de HIV: A aceitação do diagnóstico de HIV implica reconhecer a nova realidade e aprender a conviver com o vírus. Aceitar o HIV não significa resignar-se a uma vida de sofrimento, mas sim entender que, com tratamento adequado, é possível ter uma vida plena e saudável.
Por que sentimos dor?
A dor é uma parte essencial da vida, tanto como um sinal de alerta necessário para proteger o corpo e a mente quanto como um fenômeno a ser elaborado em processos emocionais e psicológicos.
Para a psicanálise, por exemplo, a dor também pode ser entendida como um sintoma que emerge de conflitos internos não resolvidos, especialmente quando se trata de um sofrimento psíquico.
A dor muitas vezes é o resultado da repressão de desejos, culpas ou traumas, sejam conscientes ou inconscientes.
Nesse sentido, a elaboração de conflitos internos é essencial para lidar com o que nos causa dor e sofrimento e, eventualmente, encontrar algum alívio.
Sentimos dor porque ela é uma resposta biológica essencial para a sobrevivência. A dor serve como um alarme do corpo, indicando que algo está errado ou que algum tipo de dano está ocorrendo, seja físico ou emocional.
É uma experiência complexa que envolve componentes sensoriais e emocionais, e sua função primordial é proteger o organismo, alertando-o para evitar ou corrigir comportamentos que possam resultar em lesões ou perigos.
Embora a dor física seja mais óbvia, a dor emocional também tem uma função protetora. Sentimentos como tristeza, perda e rejeição são, muitas vezes, acompanhados de uma "dor" real, que pode ser sentida fisicamente.
A dor emocional nos alerta para problemas em nossas interações sociais, relacionamentos e experiências internas, ajudando-nos a tomar medidas para cuidar de nossa saúde mental e emocional.
A dor tem uma função evolutiva crucial: os seres vivos que são capazes de sentir dor têm uma maior probabilidade de evitar comportamentos ou situações que possam ser fatais. Ela garante que os organismos evitem perigos e se adaptem a ambientes potencialmente prejudiciais.
Quando a dor nos leva direto para o abismo da solidão.
“No fundo, o objetivo da dor nunca foi fazer-nos sofrer, mas sim libertar-nos do sofrimento. Paradoxalmente, na tentativa de evitar a dor, sofremos ainda mais.”
Helena Martins, psicoterapeuta holística e criadora do método terapêutico Casuloterapia, em seu livro Mapa dos Sentimentos Humanos (2018), nos oferece uma forma bastante inteligente, sensível e corajosa de olharmos para a nossa dor.

Quadro dos Sentimentos Humanos
Seus estudos indicam que a dor é um “sentimento desdobrado” da carência.
De forma bastante subversiva, indo contra o que o senso comum defende, a ideia de que a carência — um sentimento classificado como primário — é um sentimento genuinamente bom, e que não há prejuízos ou malefícios em senti-la quando em sua forma pura.
Ela afirma que é da natureza humana sermos carentes, uma vez que somos seres em relação, já que não há como se pensar o sujeito sem que ele esteja envolvido em uma comunidade.
“É a carência que nos revela uma necessidade humana fundamental: o encontro e a troca com outros seres humanos. A carência nos conta que não nascemos sozinhos, que precisamos conviver, estar com outros seres humanos, compartilhar afetos, conhecimentos, valores e experiências.” (HELENA MARTINS, 2018, p. 68)
A carência está para nos alertar de que algo nos falta e, sendo assim, é nosso dever buscar satisfazer essa necessidade.
Fica fácil de entender quando olhamos para as nossas carências de ordem fisiológica, como a fome, a sede e o sono, por exemplo.
Sentimos um desprazer quando nossas necessidades biológicas, essenciais para a manutenção da vida, não estão sendo atendidas, comprometendo a nossa saúde e, em maior grau, a nossa sobrevivência.
O mesmo acontece com a carência que surge na dimensão das nossas emoções.
Quando, em uma relação amorosa, você investe o seu amor em uma pessoa e dela não vem nada em troca, você sente a carência. De alguma maneira, o seu corpo sinaliza a falta da troca de carinho, afeto e atenção que você necessita.
Quando você insiste nessa relação, apenas com a expectativa de que algo venha do outro para te nutrir, a carência, não satisfeita, toma uma proporção maior.
A carência se desdobra, deixando sua forma pura para se transformar em outro sentimento: a dor.
A dor como desdobramento da carência.

Na beira do abismo da solidão.
Aqui começa uma jornada perigosa, que, se você não cuidar, poderá te levar direto para o abismo sombrio e profundo da solidão.
Quando estamos na dor emocional, nossos sentimentos e pensamentos ficam mais confusos. Sentindo a dor da falta do amor que desejávamos receber, começamos a acreditar que algo de errado está em nós.
A autoestima fica abalada, os pensamentos ficam todos nublados e confusos, e a sua percepção da realidade distorcida. Por não se sentir amado ou desejado, você começa a duvidar de si mesmo e entra em um processo de desvalorização.
O sentimento da dor se desdobra mais uma vez, agora manifestado na insegurança.
Aqui, você está se sentindo desvalorizado, inferiorizado, inseguro e com a autoestima totalmente abalada. Desacreditado de si mesmo e, muito pior, desacreditado de que também merece amor como qualquer outra pessoa, você dá os próximos passos em direção ao seu inferno pessoal: o abismo, que é o terceiro desdobramento da carência — a solidão.
Você encontra na solidão uma tentativa frustrada de evitar a dor, mas paradoxalmente você acaba se afastando e se privando exatamente daquilo que mais desejava.
Conclusão: na tentativa de evitar a dor, você sofre ainda mais.
Pessoas que vivem com HIV facilmente percorrem esse caminho dos desdobramentos da carência, partindo do simples desejo natural de todo ser humano de ser amado e aceito, na direção de um abismo profundo e solitário de silêncio e privação de amor.
👉️ Nota: A carência é apenas um dos sete sentimentos primários que compõem o Mapa dos Sentimentos Humanos proposto por Helena Martins. Cada um dos sete sentimentos primários se desdobra em outros três sentimentos.
Se você ficou interessado em saber mais, falarei sobre todos eles em outros artigos.
Por ora, anote este resumo: Carência – Dor – Insegurança – Solidão.
"Quando não podemos mais mudar uma situação, somos desafiados a mudar a nós mesmos."
No final, aceitação não é sobre "doer menos", mas sim sobre encontrar significado e força em meio à dor.
Dificilmente você me encontrará, sendo eu um psicanalista gay que vive com HIV, repetindo a expressão “Aceita que dói menos”.
Eu, Filipe, que você conhece e que sustenta a figura de psicanalista, no fundo sou também um ser humano que viveu — e vive — seus processos de aceitação e superação, resultado de muito trabalho subjetivo de elaboração dos desafios e dificuldades da vida que me são apresentados.
Se você está sofrendo, não hesite em procurar um profissional para te auxiliar nesse processo de atravessar a dor e a incompreensão, para enfim alcançar a superação e a aceitação.
Pedir ajuda é o primeiro passo para transformar a dor em aprendizado e crescimento.
👉️ Quer saber mais sobre como funcionam as minhas sessões de terapia ou quer agendar uma entrevista para dar início ao seu tratamento, clique aqui!
Forte abraço e até mais.
Filipe Estevam
#PodeSerLeve
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