- Mais Leve Do Que Nunca
- Posts
- Tenho HIV, posso ter uma vida normal?
Tenho HIV, posso ter uma vida normal?
Mais Leve Do Que Nunca - Edição #009

Celebrando a diversidade na parada LGBT no Rio de Janeiro
✨ Dica: Leia esta edição ouvindo Máscara da Pitty na playlist do Mais Leve Do Que Nunca no Spotify (clique aqui!)
O cenário é o seguinte: você fez o teste para HIV e deu positivo.
Esse foi o gatilho para que, imediatamente, sua mente fosse invadida por centenas de perguntas:
“Como vou contar para a minha família?”
“E como vai ser para contar para a pessoa com quem estou ficando?”
“Vou viver agora dependente de uma medicação para a vida toda?”
“Quais serão os efeitos colaterais de tantos remédios?”
“Vou viver mais doente do que as outras pessoas?”
“Posso beber? Posso fumar?
Posso usar whey protein?”
“O que posso e o que não posso fazer?”
“Posso ter uma vida normal vivendo com HIV?”
Essas e tantas outras foram as minhas incertezas quando descobri o meu diagnóstico, lá em 2003, numa época em que nem a ciência sabia que uma pessoa com carga viral indetectável não transmitia o vírus por via sexual (i=i).
É difícil até de me imaginar hoje falando com tanta segurança e leveza sobre o mesmo assunto que um dia foi o meu pior pesadelo.
Essa pergunta — “Posso ter uma vida normal vivendo com HIV?” — parece sintetizar todas as outras.
E a resposta é tão simples quanto um “sim”.
Por aqui, poderíamos encerrar este texto.
Mas, certo de que tanto eu quanto você ficaríamos inconformados e insatisfeitos com uma resposta tão curta, dediquei esta edição especial, número #009 do Mais Leve Do Que Nunca, para explorar em profundidade as possibilidades de respostas que essa pergunta pode nos trazer.
Concentrando nossa atenção nas limitações que o significante “normal” carrega consigo.
O propósito desta edição criada especialmente para celebrar o Dezembro Vermelho -mês do combate ao HIV/AIDS - é provocar você a expandir sua mente.
Elevar o nível de compreensão sobre si mesmo e a explorar as infinitas possibilidades enriquecedoras que, certamente, farão com que você termine esta leitura transformado e fortalecido.
Conectar com sua autenticidade

Voltando à pergunta que trouxe você até aqui: a resposta é sim.
Mas será que tudo o que você quer é apenas viver uma vida “normal”?
Consegue imaginar um universo infinito de possibilidades para experimentar a vida?
Uma vida que você pode inventar e recriar.
Vivê-la em sua pluralidade, muito além dos padrões estabelecidos como “normal”.
Certa vez, em uma primeira sessão de terapia, uma paciente chegou até mim com a mesma pergunta:
– É possível ter uma vida normal vivendo com HIV?
Eu, claro, não respondi diretamente.
Afinal, terapeutas têm essa fama de fazer o que muitos pacientes odeiam: devolver a pergunta com outra pergunta.
– Mas o que é uma vida normal para você?
O silêncio que se seguiu foi revelador. Não precisei dizer mais nada para causar o impacto necessário.
A verdade era que ela não sabia responder o que significava essa tal vida normal que tanto desejava.
Nem o que havia nela de tão interessante, além da:
1. Falsa sensação de conforto,
2. do senso de pertencimento e
3. da necessidade de aceitação, algo natural a todos nós, seres humanos.
E, no fundo, o que ela realmente precisava era o oposto dessa ideia de “normal” que idealizava.
Aquela sessão, assim como todas as que vieram depois, tornou-se uma oportunidade para que ela se autorizasse a romper com a ideia preestabelecida de normalidade.
Foi então que ela começou a descobrir que, para ela, uma vida saudável estava muito mais em se conectar com sua autenticidade do que em tentar caber em moldes que não lhe pertenciam.
O Flautista de Hamelin

Pobre ratos, morreram todos afogados.
A cidade de Hamelin estava infestada por ratos.
Desesperados, os habitantes prometeram pagar uma grande recompensa a quem resolvesse o problema.
Foi então que surgiu um misterioso flautista, vestido com roupas coloridas, afirmando ter a solução.
Ele tocou sua flauta mágica, e os ratos, encantados pela melodia, o seguiram até um rio, onde se afogaram.
O famoso conto do Flautista de Hamelin é uma história popular de origem alemã, imortalizada pelos Irmãos Grimm.
É um conto que nos leva a refletir sobre as consequências perigosas — e às vezes fatais — de nos deixarmos levar sem questionar.
Assim como os ratos, seguimos encantados pelas normas e práticas “comuns” apenas porque “todo mundo faz igual”.
Pobres ratos, morreram todos afogados.
Será que o que desejamos realmente nos pertence? Ou apenas seguimos modelos herdados, sem reflexão?
Essa história nos alerta sobre o perigo de sermos conduzidos por ideias e caminhos que não questionamos.
Minha paciente — e talvez você também — encontrou dificuldade em definir o que seria essa tal "vida normal".
Como ratos encantados pela melodia do flautista, nossos pensamentos podem ser poluídos pelos modelos de vida idealizados que a mídia vende: promessas de felicidade infinita, riqueza abundante e realização perfeita.
Adotamos esses padrões como ideais pessoais, sem ao menos nos perguntar: qual é o verdadeiro sentido disso tudo?
O que você deseja para sua vida é algo genuinamente seu ou um desejo que você copiou ou herdou?
A verdade é que, ao se aprofundar em uma análise, você descobrirá que a maioria dos seus desejos foi construída por influências externas.
Somos, talvez, a primeira geração que começou a olhar com mais criticidade para aquele antigo ideal de “família margarina”.
A imagem de uma família feliz reunida em torno de uma mesa farta, com o sol iluminando a cena e o cachorro deitado ao lado, enquanto todos saboreiam um café da manhã perfeito.
O pão quentinho, com a manteiga derretendo — o verdadeiro protagonista da propaganda.
Esse modelo pode ser o de alguém, mas não necessariamente precisa ser o seu.
Já parou para pensar nisso?
Etimologia da palavra “normal”

Neste ponto, nada mais justo do que dedicar um momento para explorar o significado da palavra "normal" e suas limitações.
A origem do termo remonta ao latim normālis, que significa “conforme a regra” ou “em linha reta”.
Normālis deriva de norma, que originalmente significava “esquadro” — uma ferramenta usada para medir ângulos retos — e também "regra" ou "padrão".
Essa conexão etimológica associa o termo à ideia de conformidade, algo que segue uma linha reta ou uma regra estabelecida.
Isso explica como "normal" passou a ser associado a regularidade, previsibilidade e obediência a padrões sociais.
Em uma consulta rápida no Google, encontramos:
Nor.mal
adjetivo de dois gêneros
Que está em conformidade com a norma ou regra; regular, usual, esperado.
Que não apresenta anormalidades, desvios ou irregularidades.
Com isso, entendemos que “normal” nada mais é do que aquilo que se enquadra em uma norma preestabelecida ou que obedece a um padrão.
Mas compreender a origem e as limitações do termo "normal" é apenas o primeiro passo.
Agora, convido você a olhar para além dessas normas e imaginar como seria viver uma vida verdadeiramente sua — uma vida que não precisa se moldar a padrões restritivos.
Que tal pensarmos em uma vida para além do normal?

Recentemente, deixamos de usar expressões como “sou soropositivo” ou “sou portador” para dar lugar a formas mais fortalecedoras, como “eu vivo com HIV”.
Essa mudança não é à toa; ela reflete a intenção de não limitar ou reduzir a existência de uma vida a um diagnóstico.
O objetivo é que o HIV não se torne um rótulo capaz de resumir ou definir uma vida, ignorando suas pluralidades e significados muito mais amplos.
Da mesma forma, devemos ter atenção e cuidado ao lidar com palavras e seus significados.
A ideia de normalidade é, muitas vezes, um conceito aprisionador.
Ela está profundamente atrelada a padrões sociais que frequentemente excluem a diversidade da vida, das experiências humanas e das singularidades que compõem cada pessoa.
Essa exclusão é ainda mais evidente para aqueles que pertencem à comunidade LGBTQIAPN+ e carregam consigo histórias e vivências únicas.
#QuantoMenosNormalMelhor

“Bitch I´m not Madonna”
Agora, caminhando para o final desta edição especial, deixo duas reflexões importantes para você.
Sugiro fortemente que você anote no seu caderno e dedique um tempo para escrever suas reflexões.
"O que significa viver uma vida plena para você?"
"Quais padrões você pode deixar para trás para abraçar uma vida mais leve e autêntica?"
Acredito que o nosso desafio, como pessoas vivendo com HIV, não é sobre a possibilidade de levar uma vida apenas 'normal'.
O verdadeiro desafio está em questionar o senso comum e construir um caminho único.
Nosso maior desafio reside no árduo trabalho de descobrir quem realmente somos.
Descobrir a nossa verdadeira essência, para além de qualquer rótulo, expectativa alheia ou tentativas violentas de nos moldar para caber em modelos de vida que não nos representam.
E, principalmente, nos autorizarmos a viver como realmente somos, abraçando nossas singularidades.
Agora que chegamos ao final desta edição, volto à pergunta que nos trouxe até aqui:
Será que viver uma vida 'normal' é realmente o que buscamos?
Ou estamos diante de uma oportunidade única de criar algo muito mais significativo?
Para mim, a resposta é clara:
O que há de interessante em uma vida 'normal', quando além desses muros você pode, sim, viver com HIV e ter uma vida saudável, plena e realizada?
Uma vida que expressa sua autenticidade.
Uma vida que honra sua pluralidade e abraça sua diversidade.
Uma vida que celebra suas conquistas e seu orgulho.
Porque viver pode — e deve — ser muito mais interessante do que apenas 'normal'.
Sinceramente, ao lançar um olhar mais crítico sobre o que tomamos como 'normal', acredito que você também irá concluir: quanto menos normal, melhor.
Bom, por hoje ficamos por aqui, até semana que vem.
Forte Abraço,
Filipe Estevam
#PodeSerleve #DezembroVermelho #QuantoMenosNormalMelhor
Atualizações da semana: o que rola na minha vida offline
🎬 (1) O que estou assintindo:
A Substância, 2024
Em A Substância, Elisabeth Sparkle (Demi Moore) é uma celebridade em declínio que enfrenta uma reviravolta inesperada ao ser demitida de seu programa fitness na televisão. Desesperada por um novo começo, ela decide experimentar uma droga do mercado clandestino que promete replicar suas células, criando temporariamente uma versão mais jovem e aprimorada de si mesma.
📖 (2) O que estou lendo:
Por Que A Psicanálise?
Elisabeth Roudinesco
💡 (3) Pensamento do dia:
“Não é você quem cura suas feridas, são suas feridas que curam você”
👉 Gostou dessa edição?
Trocas aqui são sempre bem-vindas.
Deixe seu comentário e compartilhe suas experiências.
#MaisLeveDoQueNunca
Quer saber mais sobre como funcionam as minhas sessões de terapia?
Agende a sua entrevista, clique na imagem.
Reply